Sitemap

Manifesto aos exaustos

3 min readMay 7, 2025

É sábado de manhã e você já está exausta.
Quer dois minutos de paz. Sozinha. Só dois minutos. Não precisa de mais.
Você só quer respirar. Fingir que tem controle sobre alguma maldita coisa na sua vida. Qualquer coisa.

O dia mal começou e você já tomou oito decisões, pagou três contas, programou outras três, colocou roupa pra lavar e tentou se sentar para tomar um café sozinha.

Tanta gente. Tanta coisa. Tantas decisões. Tanta informação.

Me deixa respirar.

Você coloca os fones de ouvido pra ficar em silêncio com um barulho alto que emudeça a necessidade ao seu redor. Vai pra sala, onde não tem ninguém. Mas o cachorro te segue. Fica no teu pé. Cheira tua calça.
E você só quer ficar sozinha.
Dois minutos sem ninguém precisando de você.

Por favor, me deixa respirar.

No fone, Daddy Yankee berra “ponte loca” e você sabe que não falta muito pra enlouquecer mesmo.
Dois minutos, por favor. Dois minutos.

Na cozinha:
— Mãe, tem café?

Na tua cabeça:
A cafeteira tá na tua frente. Qual a dificuldade de olhar se tem café? Pra que me chamar? Por quê? Pelo amor de Deus — qualquer um deles, ou pela falta de amor, se preferir — só me deixa em paz. Não me pergunta nada.

Da tua boca:
— Tá quentinho. Acabei de fazer.

Um suspiro profundo.
Dois minutos. Eu consigo dois minutos.

O cachorro ainda tá lá. Olha pidão pra você.
Você quer que ele se desintegre no ar, que volte sabe-se lá pra onde veio. Seja qual for o maldito lugar que fabrica cachorros tão carentes de atenção.
Tem uma pessoa na cozinha carente também. Vai lá ficar com ela, por favor. Me deixa em paz.

No WhatsApp, alguém perguntando alguma coisa tão idiota quanto “mãe, tem café?”, enquanto o cachorro se esfrega em você.

Você sai. Quer ficar sozinha.
Com Luciano Pavarotti berrando nos fones “impossible to live with you but I could never live without you” — e você nem pensa na ironia da letra, porque está ocupada demais tentando não enlouquecer enquanto foge.

Dois minutos sozinha.
Dois minutos sem ninguém precisando de você.

O cachorro vai até o portão, bate a pata na grade. Quer ir junto.
Você evita olhar nos olhos dele pra não ver a necessidade estampada ali.

Pé no asfalto. Você começa a correr.
Ah, a liberdade!
O vento na cara. A distância que te separa da necessidade dos outros e te aproxima da tua.

Mas a canela começa a doer. Você lembra que trocou as corridas pela musculação. Desaprendeu a correr.
A endorfina não vem.
O alívio não vem.
A liberdade dá um tchauzinho de miss com um sorriso sardônico na sua direção.

Nos fones, Pussycat Dolls.
Você nunca vai ter a cintura de nenhuma delas — seja lá qual for a que agora berra “I go weak” — provando que a tal sincronicidade universal de Jung só existe pra tirar sarro da tua infelicidade.

Você recupera o fôlego perdido e tem vontade de gritar ali mesmo, no meio da rua.
E então o fone de ouvido berra:
“I’ll lose control!”

Talvez o cantor, seja lá quem for, consiga.
Você, não.

Você olha as casas ao redor.
E segura.
Se controla.
Não grita.
Não corre.
Não chora.

Respira fundo.
E caminha.

De volta pra casa.

--

--

B. Pellizzer | Escritora / Writer
B. Pellizzer | Escritora / Writer

Written by B. Pellizzer | Escritora / Writer

Não prometo finais felizes, mas prometo que vão te fazer pensar. Escritora de carne, osso e ironia.

No responses yet